terça-feira, 5 de julho de 2011

O Câncer Do Vazio

- Bla bla bla, e todas coisas mais que você diz sobre si mesma, não passam de outdoor mal-colado na avenida, de pixação rústica no muro sujo da rua escura...
- Largue de ser cínico e hipócrita Poeta Ébrio, tu sabes que o único decadente aqui é você!
- Eu que sou o decadente, Musa!? Não sou eu o robotizado, a maquininha de caixa-eletrônico que expele notinhas pelas partes baixas! Não sou eu a engrenagem, lubrificada pelas cabeças de cima da nuvem, rodando sem parar neste organismo grotesco de suor e sangue!!!...
- Não comeces o discurso piegas e seu blábláblá bêbado-surreal nesta salada de críticas metafóricas que usas como argumento no diálogo unilateral. Tuas lânguidas e porosas falácias são apenas folhas secas que passam pelo meu fronte no outono: Ou nem sequer me atingem, ou são simplesmente pisadas pelo meu sapato.
Poeta Ébrio aponta para a face de Musa com seu júpiter furioso
- Tu és cega pelas mesmas configurações e condicionamentos que mecanicamente responde e ganha um biscoitinho, como uma cadela adestrada!
Julgas “diálogo unilateral” a língua do poeta que tu não entendes – e jamais entenderá – se não libertares a poesia estagnada, na cela enferrujada, do peito exasperado!
O silêncio envenena o ambiente, ambos sufocam suas línguas com a epidemia venenosa dos ecos de cada pequeno som diante do vácuo. Musa fita o céu cinza da noite urbana, através da lente suja, com um olhar de cólera em síntese com seu corpo rijo e tenso. Acende um cigarro aos tremeres inconscientes, e guina teu olhar infectado pela mais pura ira que um dia Poeta Ébrio já vira:
- Tu jamais entenderás o que é o determinismo, cretino-como-câncer, de um bando de cabeças mecânicas-em-vácuo que te estupram desde a infância com suas imagens vazias, cheias de pretensões e terceiras-intenções, de fetichismo da existência!
Poeta Ébrio se levanta da cadeira cheia de formigas e infectada pela ansiedade oca de tremeres, caminha mancamente pela sala, em disfarce de adolescente chegando bêbado em casa às cinco horas da madrugada. Seus olhos se esbugalham com o comentário de Musa, porém, ainda sim, a observa com um olhar soberbo, como se Musa fosse apenas mais uma ovelha desgarrada aprendendo a andar sem um pastor. Pretendia ajuda-la se não fosse cega-surda-tagarela.
Musa inconteve o silêncio e continuou o falar exasperado, soltando todos seus demônios recônditos encima de Poeta Ébrio:
- Minha mente é uma cabeça matastaseada com o câncer do vazio! O fetiche condicionado consome apenas lixo enfeitado, eufemismos de realidade! Não tenho um filtro que separe o entulho do extulho, nem o lixo do luxo!
Poeta Ébrio agora se inconforma,vê em Musa um espelho partido, sujo pelas poeiras do existir, vê teu passado gritando: “Tu jamais atingirás tua obra, Poeta-Pateta na contramão!”.
Exaspera teu grito de sermão libertador:
- Tu não tens filtro?! Tu apenas observas pelas lentes! Apenas olha pelas lentes opacas, trincadas, machadas e distorcidas pelo padrão! Teu erro é observar por lentes!
Pare de procurar caminhos e crie estradas! Pare de lamentar tua infecção pela configuração, tu não és a única! Pare de observar por lentes, seja a lente!
O Poeta bate a mão esmagadora sobre a mesa e fita Musa com o olhar desconcertado. Esta olha para os próprios sapatos e, em conflito existencial pleno, observa seu pé se mexendo histericamente.
Ele olha as horas no relógio, se aproxima da porta do apartamento, seus passos ecoam caminhando pelo silêncio, observa Musa tremer enquanto seus olhares abrem e fecham e seu rosto se rubora:
- Sabe qual é o silêncio mais cruel que existe? O da madrugada, pois este poderia simplesmente não existir se estivesse no lugar no certo, na hora oportuna e libertadora, quando as luzes se apagam e os loucos não precisam usar máscaras.
Não há mais nada a se dizer neste cômodo oco.
O Poeta Ébrio abre a porta, dá seu primeiro passo de fim-de-noite, e bate a porta do apartamento de Musa, como se se despedisse com o barulho ecoante de sua inconformação decepcionada da madeira barata batendo no estalar do portal daquele universo que julgava pobre.
Musa chora durante duas horas até desmaiar de sono e tensão enquanto Poeta Ébrio desmaia em uma calçada no centro da cidade.

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