sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Irrelevância

Concebo o mundo pelo meu pensamento. Fito-o, o interpreto com a irrelevância de poeiras cósmicas. Afinal, como poderia eu ser arrogante se sou tão irrelevante como todos nós, sacos de carne errantes em busca de algum sentido para existir?

De tudo que sei, sou insignificante. E é com minha irrelevância que encaro a realidade, pois esta é minha maior dádiva libertadora.

Minha condição me faz ser o que quiser ao meu bel prazer. Pois de nada faço parte. Nada integro neste mundo em chamas. Nem nada devo aos efêmeros itinerantes que vagam inanes por cá e por lá.

Não sou um homem de palavras, pois estas nada valem. Como poderia eu afirmar alguma certeza, sendo que sou apenas uma peça desintegrada suscetível às paixões do mundo?

Como poderia eu, peça desqualificada de um todo que nunca existiu, afirmar alguma certeza neste conjunto de cenas incessantes e inconstantes?

Não existem certezas. Existem intenções. Estas mesmas serão apenas vitimadas por outras remanescentes.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Lábios Clandestinos

Esses teus lábios...
Os observei, os contemplei
Durante esse conjunto de cenas
Desta realidade que não é minha.

Esses teus lábios...
Os contemplei, porém nunca os vivi.
Nunca os senti nos meus,
Nunca os senti em mim.

Não.
Não se trata de romance.
Trata-se destes lábios, desta boca tua,
Deleite exótico do qual nunca provei.

Desejo submerso
Nas profundezas da clandestinidade.
Não desejo os possuir,
Não desejo os amar.

Desejo apenas prova-los,
Apenas por um momento atemporal.
Somente para forjar a obra de arte
Efêmera que é um beijo.

Essencialismo Débil

Morrer sem ter consciência
De seu significado
Nas lentes opacas
Da existência.

Existir sem conhecer
A origem de sua razão.
Sem metas, sem visão,
Perdido sozinho na escuridão.

Agir sem pensar
Deixar os naturais instintos
Da exasperada humanidade
Guiar vossos impulsos.

Sentir sem vontade.
Simplesmente sentir obstinadamente
A emoção que flui,
Que assassina, que morre.

Existir sem conhecer
Sentir sem querer
Agir sem pensar
Morrer sem saber.

Essa é a essência tão débil
E humana que narra
Os trajetos conflitantes
Da realidade por nós forjada.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Um Par de Olhos e Uma Caixa de Presente

- E então, meu amor, que presente você escolheu?

Era mais uma daquelas datas comemorativas, clássicas de calendários a se riscar. De qual data especificamente, não me lembro bem. Afinal de contas, todas são tão hipócritas e frígidas que não fazem a menor diferença. São apenas fios-de-barbante de marionetes conviventes, incessantes a dançar a dança do titeriteiro.
Sim, uma data comemorativa qualquer:

- E então, meu amor, que presente você escolheu?

O débil cônjuge perguntou para sua amada com um olhar complacente. Sua intenção era tão débil quanto sua índole. Porém, uma intenção débil é uma intenção mais pura que as outras. Talvez exista algum valor na inocência. Ou talvez inocência seja apenas mais um sintoma de um débil.

- E então, meu amor, que presente você escolheu?

Sua amada olhou, com um olhar meio tristonho, meio sem jeito. Um daqueles olhares que vem seguido de um imenso discurso, um argumento filosófico... Praticamente uma tese.
Ela olhou de sua forma insólita à reação esperada. O cônjuge insistiu:

- Vai querer aquela bolsa que você vivia namorando naquela sua loja preferida?

Tentou demonstrar seu interesse, sua notabilidade aos detalhes de seu quotidiano. Na verdade, tal cônjuge realmente só se lembrava da bolsa, da loja, dos detalhes, por reparar no decote saliente da simpática atendente de sorriso de plástico (sim, fazia parte do currículo necessário ter uma aparência atraente e um sorriso de plástico).

Sua amada o fitou, da mesma forma complacente, com este olhar tristonho incompreensível que começava a gerar alguma preocupação. Os olhos percorreram teu rosto até encontrar outros olhos e soltar sua língua. Disse:

- Não meu amor. Sabe, tenho pensando no sentido dessa coisa toda, dessas datas todas, de todas essas obrigações ... O que realmente faz sentido nisso tudo? O que significa aquela bolsa na vitrine, aqueles detalhes dourados, aquele couro marrom?

O cônjuge olhou, chocado com a resposta, em um estado estático e sem conseguir expressar ou sequer questionar a situação. Ele manteve seus argumentos, como se nada tivesse acontecido. Balbuciou palavras com um ar sedento de piedade, embora inconscientemente:

- Mas eu achei que você tinha gostado daquela bolsa... Tenho me esforçado para economizar o suficiente para te dar aquela bolsa. Eu achei que você gostaria da surpresa.

Ela respondeu, nem um pouco atingida pelo apelo emocional inconsciente e instintivo de seu cônjuge:

- Não meu amor. Não é isso. O que quero dizer é: o que significa tudo isso? O que significa mais uma bolsa cara em meu armário? Sabe... Eu queria algo mais simples... Algo mais humano.

A reação perdida dele, de forma incompreensiva, com o olhar a sucumbir num abismo de enigmas, os quais ele jamais realmente compreenderia. Tentou dialogar com alguma astúcia, com algum truque na manga num ato tépido de doçura e desespero:

- Mas então que presente você quer, meu amor?

Sua amada concebeu sua incompreensão. Concebeu o vazio que se alojava dentro de seu cônjuge. Ou o vazio que se alojava dentro de si. Como esse famoso vazio do qual tanto falam esses seres insatisfeitos com a realidade na qual habitam. Esse vazio... Esse vazio provocou uma resposta inusitada.

- Que presente eu quero? Eu quero... Eu quero seus olhos.

Sim, a este ponto tal cônjuge já refletia as luzes brancas daquele estabelecimento comercial em suas faces. O abismo de enigmas o consumiu, o atingiu de forma vil e um tanto dolorida. A reação foi um gaguejar estático de eco:

- M-m-m... Meus... Meus olhos?! Quer meus olhos de presente?!

Ela pariu um sorriso alegórico e tranqüilo. Olhou com olhar astucioso e respondeu com uma pequena ponta, quase imperceptível, de irritação:

- Sim, quero seus olhos. Quero seus olhos em minhas mãos, para que eu possa ver através deles. Quero seus olhos em mim, para que eu possa os encontrar quando os meus se perderem nas margens vazias... Quero seus olhos nos meus quando não houver solução, quando não houver problemas. Quero teus olhos numa caixa de presente, como uma prova de amor, de sacrilégio de emoção...

Seu diálogo alarmante chocou nos tímpanos de seu cônjuge como pequenos impactos dialéticos a golpear sua mente, causando esse estado de estaticidade, de impotência. Ela continuou:

- Quero seus olhos pra ter acesso a todos registros em suas retinas. Quero sua visão de mim, saciar o desejo de compreender como me conhece, como me vê. Quero seus olhos comigo, como guardiões confiáveis, como uma certeza nesse mundo tão incerto e inconstante. Quero a certeza de teus olhos sempre à mão. Quero teu olhar guardado na minha bolsa, só pra poder o observar, o ver cativar o meu... Quero tanto teus olhos que não sei dizer. Eu só quero eles comigo, nessa forma tão bonita de olhar.

Ele engasgou com sua língua, quase se sufocou nela. Não, ele não tinha nenhuma resposta pronta, nenhuma frase bonita. Não sabia ser cônjuge romântico e apaixonado, nem sabia dizer frases bonitas além das que encontrava em cartões prontos com frases célebres e seculares. Sua resposta foi a mais óbvia possível:

- Mas... Mas, meu amor, eu não posso te dar meus olhos. Eu preciso deles pra viver. Eu preciso deles pra trabalhar, pra te agradar, te confortar...
O rosto de sua amada se torceu, como se o estivessem esticado e torcido como um pano úmido. Sua expressão demonstrava uma cólera intensa, uma irritação tão profunda. O resultado foi um grito seguido de prantos inflamados:

- Eu só queria seus olhos! Seus olhos nos meus, seus olhos pra mim! Queria que seus olhos me enxergassem. Mas eles não me enxergam, não como pessoa! Eles não me olham como humana. Me olham como produto, como algo que você tem que suprir como uma máquina! Esses seus olhos... Não! Não os quero! Seus olhos me qualificam, colocam preços em minha satisfação! Seus olhos só vêem um consumo fútil! Não! Não quero seus olhos! Eles me enojam! Eles são ridículos!!!

O rugir de sua cólera através de sua boca, a expressão rubra em seu rosto, o gesticular agressivo de seus braços, todos os gestos... Todos eles, para o cônjuge não faziam o menor sentido. Ele não compreendia sua irritação, não compreendia os gritos que atingiam sua face. Não, ele não compreendia o que significava desejar olhos...

Sua amada arremessou a bolsa de mão em seu peito. Seu rosto escorria a uma dor profunda. Ela saiu de cena num andar furioso e cambaleante, deixando seu cônjuge estático, como uma estátua inane a olhar a paisagem sem vê-la.
Ele ficou, tão estátua como uma rocha. Observou-a deixar o recinto e se manteve estático, sem reação, sem compreensão, sem ela... Sem nada.