segunda-feira, 30 de maio de 2011

Uma Forja de Memento

A manhã raiou impiedosa, rompendo com o frio furioso da madrugada. Os ventos se acalmaram, as lágrimas pararam de cair. Efêmero levantou-se de sua cama, lavou o rosto, ligou o aparelho de som e escutou uma música qualquer.
Acendeu um cigarro, colocou algumas roupas e parou diante da janela, em devaneio:
- O que há de estático nesta existência? Nem os dias são os mesmos, nem as nuvens são as mesmas... Há dias de humores tépidos, gélidos ou incendiários, como nós criaturas passadas... As mesmas águas não hão de correr os mesmos rios, nem as mesmas lágrimas hão de cair dos mesmos olhos, nem as dores serão as mesmas dos corações dilacerados...
Tragava pesadamente seu cigarro enquanto fitava o dançar das nuvens diante do vento da manhã. Estava praticamente como uma estátua-viva viciada em nicotina.
Levou o cigarro a sua frente, e falou sozinho com um sorriso no rosto:
- Jamais serão as mesmas fumaças dos mesmos cigarros, nem os mesmos sabores das mesmas bebidas que bebemos até não sentirmos seus sabores...
Afogou o cigarro no cinzeiro.
Ouviu alguém bater em sua porta enquanto escovava os dentes. Gritou para que entrasse. Ouviu os passos irem até o pequeno quarto e nenhuma palavra.
Terminou sua higiene bucal e foi até o quarto. Era Musa que se sentava em sua cama olhando-o com um olhar insano esboçado em sua face ebúrnea de sorriso infante.
Ela segurava uma garrafa de vinho e parecia não ter dormido ainda.
Disse, com um sorriso:
- Fiquei pensando em quem tomaria vinho comigo às sete da manhã.
A face de Musa esboçava um nítido sorriso falso, ao vê-la, Efêmero não sabia se iria rir ou chorar. Pegou a garrafa de vinho e disse:
- Você não dormiu ainda. Você acordada uma hora dessas é algo intransponível.
Musa sorriu bebadamente:
- Hah, como você é observador. Só vim fazer um último gesto, e você é o único acordado agora.
- Ultimo gesto? Do que você está falando afinal de contas?
- Eu vim me despedir.

Efêmero levou uma guinada, e não soube por quê. Musa era apenas mais uma colega com a qual conversava nos corredores da faculdade, ou que bebia e cantava nos luais ocorrentes. Não era de fato alguém que lembraria afinal de contas.
Porém, foi afetado, de fato, pela notícia. Deu um gole na garrafa de vinho e perguntou:
- Mas o que houve? Porque você vai embora assim tão de repente? Vai desistir de tudo antes de começar?

Musa retorceu seu sorriso, como se partisse de comédia a tragédia em menos de um segundo. Engoliu parte da garrafa, acendeu um cigarro e disse:
- Sabe que é engraçado. Agora que irei deixar todo este destino para trás, sei realmente como as coisas nada são senão vários capítulos de um livro. Duram por um tempo, e quando menos esperamos, acabam. Para que a história continue, precisamos passar para o próximo, sem ter dó de virar páginas e deixar para trás os cenários e personagens que tanto amamos.
- Mas porque você vai desistir agora? Ainda temos tanta coisa pela frente, tantos momentos para viver aqui, tanto conhecimento para adquirir, tanto a chorar, tanto a rir!
Porque vai desistir do seu sonho assim?
Efêmero não acreditou em suas palavras, que tão emocionadas, porém, não pareciam tocar Musa, que agora mostrava um sorriso sereno enquanto olhava para janela do quarto, vendo o azul se estabelecer.
Musa respondeu:
- Já realizei meu sonho, agora preciso realizar outros. Ainda tem muita coisa nesse mundo que quero conhecer, muitas músicas e poemas diferentes, cantados e declamados por diversos intérpretes diferentes. Quero ver tanta coisa que ainda não conheço, que preciso ficar em mais de um lugar ao mesmo tempo!
O silêncio tomou o ambiente. Efêmero notou que não conseguiria convencer Musa, eram parecidos neste aspecto. Ambos observavam pela janela o Sol subir cada vez mais no horizonte. Este momento foi o momento mais próximo que estiveram juntos, dentro de todo aquele cotidiano, de todas as vezes, que se viram, durante todos os dias. Ambos sorriam e olhavam para o mesmo céu simultaneamente.
Efêmero sentou-se ao lado de Musa, que afogava seu cigarro no cinzeiro, olhou para o teto e disse:
- Sabe, acho que eu jamais me lembraria de ti se não fosse por este momento. Agora acho que jamais me esquecerei deste momento. Que jamais tomarei vinho de manhã mais uma vez sem lembrar-te, que jamais me esquecerei da maneira louca que você cantava nos luais depois de várias doses de vodka.
- Por isso um último gesto, para levar comigo um gesto de alguém, de você, pra que eu me lembre de tudo de belo que vivi durante estes poucos meses por aqui. Um último rosto, um ultimo sorriso pra associar a todos que vi sorrir, a tudo que fez sorrir enquanto estive nesse sonho.

Olhavam-se com empatia, como se começassem a apaixonar-se. Aquele momento expressou a sensação de acolhimento, de compreensão que ambos procuravam. Pois a única conclusão é a de que tudo que queremos é alguém próximo de nós no final dos ciclos.
Alguém, não importa exatamente quem, mas alguém para carregar uma memória e deixar uma em seu lugar.
Efêmero nunca havia sentido aquela espécie de emoção por alguém antes. Era como se o universo se desconstruísse e a ilusão fizesse mais sentido que a realidade. Olhando pela janela, disse:
- Nem os dias são os mesmos, nem as nuvens são as mesmas...
Musa respondeu:
- E os beijos mais belos são aqueles que não aconteceram.
- Como assim? Indagou Efêmero.
- Os beijos mais belos são aqueles que não aconteceram, por isso não irei beijar teus lábios nesta manhã. Por isso jamais provarás meus lábios, para que se lembre a tentação de tê-los enquanto lembro a tentação dos teus.
- Você jamais irá possuir meus lábios, e eu jamais os teus. Com isso, jamais me esquecerei de ti.
Efêmero estava estático, não sabia como reagir a tal situação.
Musa riu, deu um beijo tranqüilo na testa de Efêmero e disse com um sorriso:
- Adeus.
Saia andando quando Efêmero disse de súbito:
- Até mais.
Musa parou, respondeu com um sorriso retorcido:
- Até mais? Não nos veremos mais,
Efêmero disse em esperança vã e olhos opacos:
- Ainda nos veremos algum dia... Em algum lugar...
Musa olhou na profundidade dos olhos de Efêmero e esboçou seu ultimo sorriso sarcástico:
- Nem os dias são os mesmos, nem as nuvens são as mesmas... Boa sorte, Efêmero.
E saiu andando lentamente pela porta, como se já não estivesse mais ali.
Efêmero nunca mais a viu, e nunca a esqueceu.

domingo, 29 de maio de 2011

Ele Carregava Cacos

Ele carregava cacos,
Vermelhos como pétalas de rosas,
Vermelhos como sangue,
Escarlate gritante na calada da noite.

Ele carregava cacos
Que, quando ele respirava,
Flutuavam dentro de sua caixa torácica,
Cortando-o, dilacerando-o internamente
Em brutal agonia.

Ele carregava cacos,
E um dia ousou retira-los.
Empunhou-se de um alicate e uma faca
Para tornar sua inóspita caixa torácica
Algo além disso.

Ele removeu seus cacos,
Deixando vazia sua caixa torácica.
Esta, de tão torturada, de tão dilacerada,
Já não conseguiu acolher mais ninguém.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Menina-Anacronia

Oh menina, oh menina
Em meu tépido peito enclausurada.
Oh menina, graciosa vítima
De minhas febris serenatas!

Oh menina que me esquentou,
Que em mim consolidou mais uma anacronia.
Agora tua ausência me esfria em nova alteridade,
Após a alvorada que se rompeu
[e o dia que mal começou.

Oh menina, oh menina!
Não minta, não diga
Que após colocar um alvo no peito
Não quer ser pelas flechadas atingida!

Oh menina, sorria!
Tu tens uma flecha no peito!
Deixe-o sangrar!
Deixe teu seio respirar!

Pois enquanto uns as arrancam,
Apavorados no mesmo medo,
Outros de coração oco
Clamam e suplicam pelo mesmo!

segunda-feira, 9 de maio de 2011

É Preciso Ser Personagem

É preciso ser personagem, neste palco
Com toda sua efemeridade e sua inconstante cenografia,
Nesta transmutação-viva de imagens e sugestões,
É preciso ser personagem para que haja graça
Para a platéia apreciar.

É preciso que haja ação,
Que haja pulmões, coração,
Pernas e braços realizando movimentos,
Prendendo a atenção do público
Com a dança insana e incomum
Das personagens do momento.

É preciso cantar loucamente numa noite ébria;
É preciso chorar desesperadamente (e fazer chorar a platéia);
É preciso ronronar deitado na cama tépida
E gritar de dor numa guinada mal sinalizada.

É preciso sentir impreterivelmente,
Mesmo que isto não signifique mostrar os dentes,
Expor a alma no palco mesmo diante da face
Do sofrimento eminente.

É preciso ter caráter, ideologia, honraria,
Ou simplesmente algo para acreditar,
Ter algum algo para amar,
Alguma cruz para carregar
Ou cova para soterrar...

É preciso ser personagem e atuar,
Ser força ativa do mundo,
Ser o escritor cansado e moribundo
A escrever as fantasias oníricas
Do submundo tão sensível dos artistas.

É preciso ser Sócrates, Platão e Aristóteles;
Ser Schopenhauer, Nietzsche e Empédocles;
Porém, é preciso também ser Caeiro, Baudelaire e Azevedo
Sem ao menos escrever um soneto.

É preciso ser personagem gracioso no palco,
Para que a platéia tenha motivo pra existir,
Para que o ator tenha motivo pra existir.
Porém não ser simplesmente artista na face do mundo,
De alma recôndita, contida,
Mas é preciso somente
Ser artista na esfera da vida.

domingo, 1 de maio de 2011

Nossos Cacos

Todo nosso caso de acasos
Deveria ser banhado por lágrimas e risos,
Beijos e abraços submissos
A essa coisa estranha que chamam de destino,
E não narrados pelos carros que nos atropelaram,

Nem pelos cacos de vidro
Que nossas faces percorreram e cortaram
Ao desintegrar-se da vidraça da alma.

Faltou aquela melodia daquele violão velho.
Aquele pedido absorto atingindo a superfície,
Aquele sorriso torto fugindo
Da esquisitice de ser sincero.

Faltou o grito das estrelas,
A iluminação da estréia de nosso espetáculo,
De quando as trajetórias de nossos lábios
Se encontraram no primeiro ato.

Faltaram os cacos dos corações dilacerados
Se consolando no ventre da noite;
O gesto da carícia empática
Que há entre os desamparados.

Faltou realidade, faltou sonho...
Faltou o primeiro momento teu,
Momento meu de quando eu criei
Um mosaico com todos nossos cacos.

Sim...
Faltou o primeiro momento que se dissolveu,
Que o tempo rompeu,
Noite que amanheceu,
Sonho que se acordou,
A única lágrima brilhosa que escorreu.